As propriedades gerais da matéria*


Rómulo de Carvalho

O inventário do material do Gabinete de Física da Universidade de Coimbra criado pela reforma pombalina inicia-se com a relação das "máquinas" destinadas ao estudo das propriedades gerais da maté-ria. Por esse mesmo assunto se inicia o compêndio de Física do professor dalla Bella, após os conve-nientes preliminares introdutórios.

A necessidade de apresentar as propriedades gerais da matéria antes do estudo sistemático dos fenóme-nos físicos, obrigava o expositor, logo de início, a declarar qual a sua posição filosófica no mundo das ideias da época. Tomar essa posição, no século XVIII, correspondia a definir uma atitude de combate, decidindo-se por um sistema interpretativo que era sempre, qualquer que fosse o escolhido, alvo de fáceis ataques.

As propriedades gerais da matéria referidas no compêndio de dalla Bella eram a extensão, a divisibilidade, a impenetrabilidade, a porosidade e a inércia. Destas, a divisibilidade punha logo de princípio a questão da aceitação ou repúdio da hipótese da existência dos átomos, um dos temas de controvérsia mais acesa.

A atitude filosófica dos físicos do século XVIII, no que respeita a este e a outros pormenores, pode ser vivamente surpreendida na obra do padre Teodoro de Almeida, um dos mais notáveis pedagogos portugueses. A sua obra Recreasaõ Filozofica é redigida segundo o estilo corrente das obras setecentistas de intenção didáctica em que se põem a falar diferentes personagens como nas peças de teatro, umas que atacam e outras que defendem determinados princípios. As personagens da Recreasaõ são três: Teodósio, "filósofo moderno", que é o próprio Teodoro de Almeida; Eugénio, que é a pessoa interessada em conhecer de que lado está a razão, se na opinião dos Antigos se na dos Modernos, e a quem se dirigem, portanto, os ensinamentos; e Sílvio, um médico, amigo de Teodósio, homem culto, de mentalidade formada segundo a filosofia aristotélica. Entre os três irá processar-se um longo debate em que serão discutidos a natureza do Universo, os animais e as plantas, os astros, a Lógica e a Metafísica.

"Todas as coisas, - diz Teodósio, - constam de duas partes, a que os Filósofos chamam Princípios; que vêm a ser, Matéria, e Fórma."

"Pois então em que está a diversidade?", pergunta Eugénio, o discípulo, interessado pela conversa. Em resposta Teodósio explica que a divergência de opiniões está "quando vamos a dizer o que é fisicamente essa matéria, e essa fórma". "Esta matéria, de que todas as coisas se compõem, é um agregado de partes corpóreas de uma pequenez incrível, de tal sorte, que cada uma delas separada das outras, seria totalmente imperceptível: por mais que a imaginação forceje, não pode fazer ideia de quão pequenas são as partes da matéria, em que se podem dividir os corpos: um grão de areia se pode dividir em mais de mil partes" (p. 13).

Responde-lhe Sílvio pela boca dos filósofos antigos: "[...] nós não contradizemos isto, antes defendemos, que um grão de areia se pode ir por um Anjo dividindo por toda a eternidade, sem que ao Anjo nunca falte que dividir. Os Modernos neste particular é que têm grandes dificuldades que vencer; porque essas partículas, ou partes mínimas da matéria, dizem que já se não podem dividir, que isso é o que eles chamam Átomos, donde lhe veio a denominação de Atomistas. Doutrina tão quimérica, e imperceptível, como as mais em que eles se estribam" (p. 24).

A discordânda entre Antigos e Modernos no que respeita à divisibilidade da matéria é assim posta nestes termos: para os Antigos, a matéria pode ser dividida indefinidamente; para os Modernos, há um limite de divisão da matéria que são os átomos.

Assim fica desenhado um dos termos da luta entre Escolásticos e Modernos. Para todos a matéria é divisível mas, para os Escolásticos e para alguns Modernos (cartesianos), não há termo final de divisibilidade; para os outros Modernos, a divisibilidade tem o seu termo em partículas chamadas átomos (newtonianos e gassendianos). Para os Modernos, porém, as partes constituintes da matéria, sejam átomos ou não, dispõem-se de certo modo, dando-lhe assim a forma com que aquela se apresenta. Para os Escolásticos, a forma é considerada como uma entidade, entidade essa que é distinta da matéria.

A impenetrabilidade é outra das propriedades gerais da matéria, que consiste, conforme é uso dizer-se, em um corpo não poder ocupar o espaço que já esteja ocupado por outro. As dúvidas que a existência desta propriedade levantava no espírito dos físicos antigos era no respeitante aos fluidos. Que os sólidos eram impenetráveis, entendiam; mas que os líquidos, e muito particularmente os gases, também o fos-sem, é que era motivo de discussão.

Para os filósofos "modernos" do século XVIII toda a matéria era, na sua essência, sólida. O que emprestava aos líquidos e aos gases a sua qualidade de fluidez era a raridade, maior ou menor, das partes sólidas suas constituintes. As partículas mínimas da matéria serão, em si mesmas, sempre sólidas. Pen-sando assim, que toda a matéria é sólida, será a própria solidez que justificará a sua impenetrabilidade. Ser sólido e ser impenetrável tornam-se sinónimos.

As experiências que os físicos "modernos" setecentistas executavam para convencer os alunos da impenetrabilidade da matéria visavam assim dois fins: 1) provar que as partículas constituintes dos líquidos e dos gases são sólidas; 2) provar que um corpo só pode ocupar o lugar de outro desde que este se retire primeiro donde estava.

O terceiro grupo de "máquinas" do Gabinete de Física pombalino destinava-se ao estudo da "porosidade" da matéria, assunto de magna importância na Física, e também na Química, setecentistas.

Os físicos setecentistas recorriam ao conceito de poros para interpretarem grande número de fenómenos, como sejam a dissolução, certas reacções químicas, a densidade das substâncias , etc. A noção de poro era, para o século XVIII, de tão grande vulto como, por exemplo, a de electrão nos nossos dias.

O conceito de inércia, as suas causas e consequências, o movimento, a velocidade adquirida, as variações da velocidade, a força viva, a quantidade de movimento, a força centrífuga, foram objecto da mais acesa controvérsia entre físicos e teólogos.

"Inércia, - diz Teodoro, - quer dizer incapacidade para fazer nada per si". Esta incapacidade que o autor sublinha, significa que "a matéria é inerte, isto é, incapaz de mudar o estado [de repouso ou de movimento] em que se acha" (idem, II, 114). "Todo o corpo posto em quietação persevera na quiete até que causa estranha o ponha em movimento." "Todo o corpo posto em movimento persevera em movimento até que causa estranha o ponha em quietação" (II, 145). "Todo o corpo em movimento persevera na linha de movimento até que causa estranha o faça mudar de linha." "Todo o corpo em movimento persevera no mesmo grau de velocidade até que haja causa estranha que ou a diminua ou a aumente" (II, 146).

Esforça-se Teodoro, com a sua habitual clareza, por fazer entender que a inércia dos corpos não tem nada a ver com o peso desses mesmos corpos, e evitar a fácil confusão que então se fazia. "Alguns há, - diz, - que não querem conceder outra resistência ao corpo quieto senão a que lhe faz a gravidade" (II, 155), e demonstra, por experiências, que não há justo motivo para pensar deste modo.

Da colecção original do Gabinete de Física pombalino restam apenas dois instrumentos para o estudo das propriedades gerais da matéria, um conjunto para o estudo da impenetrabilidade (instrumento 1) e outro para ilustrar a porosidade (instrumento 3). Incluímos também neste grupo a campânula de mergulhadores (instrumento 2), de aquisição posterior, mas cujo funcionamento assenta também na propriedade da impenetrabilidade e que é classificada nesse capítulo no catálogo de 1851.

* Texto adaptado de História do Gabinete de Física da Universidade de Coimbra.


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