Origem e desenvolvimento do Gabinete de Física Experimental
da Universidade de Coimbra


Décio Ruivo Martins

A segunda metade do século XVIII é uma época que marcou a história, não só pela extraordinária revolução social que se operou em França, mas também pela renovação literária e científica que por toda a parte agitava o espírito público. Também Portugal recebeu influências desta grande e profunda elabo-ração de ideias. Foi nessa onda de criatividade que surgiu em Coimbra a Faculdade de Filosofia que con-tribuiu para a fundação de magníficos estabelecimentos científicos, os quais nos legaram um valiosíssimo património científico, testemunho do desenvolvimento das ciências em Portugal e na Europa.

O ensino da "Filosofia Experimental" era uma das mais urgentes necessidades da instrução pública em Portugal. A Reforma da Universidade de Coimbra em 1772 integrou na Faculdade de Filosofia o Gabinete de Física Experimental. Uma das primeiras colecções de instrumentos que o enriqueceu esteve intimamente ligada à extinção do estudo de Matemática e de Física no Colégio dos Nobres em Lisboa. Na sua origem encontramos pressupostos pedagógicos que aumentam ainda o seu valor. Os estatutos pombalinos da Universidade declaram que

Para que as lições de physica, que mando dar no Curso Phylosophico, se façam com aproveitamento necessário dos estudantes; os quaes não somente devem ver executar as Experiências, com que se demonstram as verdades até o presente, conhecidas na mesma Physica; mas também adquirir o hábito de as fazer com sagacidade e destreza, que se requer nos Exploradores da Natureza; haverá também na Universidade huma Coleção das Máquinas, Aparelhos, e Instrumentos necessários para o dicto fim.

Um dos objectivos da criação do Gabinete de Física foi o ensino da Física Experimental. Este ensino devia mostrar o objecto desta ciência, a sua origem, os seus progressos bem como as diferentes revoluções que conheceu ao longo do tempo. Por outro lado, o desenvolvimento dos conhecimentos individuais que não se limitavam a este método experimental não foi esquecido. Ao lado da "arte de fazer as experiências" existia a noção de repetir, de combinar, de distinguir os factores acessórios dos principais. O controlo das variáveis de que dependia um sistema físico era um dos objectivos inscritos no plano de estudos do Curso Filosófico. Estes objectivos deviam verdadeiramente constituir a primeira finalidade da cadeira. O principal fruto das experiências que o professor devia realizar era a descoberta das leis gerais que regem a natureza e o seu funcionamento. O ensino ministrado devia ter em conta principalmente o carácter qualitativo. Nos Estatutos pombalinos da Universidade determina-se que

Não se ocupará com tudo em mostrar por experiência os resultados da Theorica e do Cálculo; os quaes, suposta a firmeza dos Princípios, são mais exactos do que o resultado das Experiencias feitas em ponto pequeno, e complicadas com muitas circunstancias parciaes, que influem no effeito: Por isso sómente se fazem com utilidade, quando se dirigem unicamente a comparar o resultado mecanico com o calculado; para se conhecer pela diferença a resistencia das machinas, a fricção, e outras circunstancias, que influem no jogo dellas.

O professor devia explicar as verdades descobertas até então no que concerne às propriedades gerais dos corpos, tais como a extensão, a divisibilidade, a forma, a porosidade, a compressibilidade, a mobilidade, a elasticidade, etc., com ajuda de experiências comprovativas e de análises judiciosas.

O estudo das leis de equilíbrio, do movimento simples e composto, dos fenómenos da gravidade e da aceleração dos graves, estavam no âmbito da Física Geral. O programa do curso de Física Experimental limitava-se aos princípios fundamentais que podiam ser compreendidos por meio da experiência e da geometria elementar. Toda a elaboração teórica mais complexa era deixada ao Curso Matemático.

A fim de satisfazer aos princípios orientadores que levaram à criação da cadeira de Física Experimental no Curso Filosófico, foi necessário equipar convenientemente o Gabinete de Física de Coimbra. Este aspecto do projecto era ambicioso. O material didáctico, inicialmente fabricado ou adquirido pelo Colé-gio Real dos Nobres de Lisboa, foi posteriormente transferido para Coimbra em 1772. O fabrico e a aqui-sição destes instrumentos deve ter começado no ano de 1766, ano da fundação do Colégio dos Nobres. João Antonio dalla Bella, originário da cidade italiana de Pádua, tinha sido contratado para ensinar Física no Colégio dos Nobres. Quando esta ciência deixou de ser ensinada no Colégio, este professor foi trans-ferido para Coimbra, depois da reforma pombalina da Universidade. Histoire de l'Academie Royal des Sciences de Paris e as Philosophical Transactions de Londres.

Para proceder ao fabrico das "machinas", contou com a competência de Joaquim José dos Reis, que na altura era mestre-de-obras no edifício do Colégio dos Nobres. São da sua responsabilidade os magníficos trabalhos em madeira, verdadeiras obras de arte, destinadas ao ensino da Física. Quanto às peças de metal, foram construídas na Real Fábrica sob a orientação do genovês Pedro Schiappa Pietra, na época radicado em Portugal.

Os instrumentos que equipavam o Gabinete originariamente estavam profundamente marcados pela influência dos instrumentos fabricados na Holanda no século XVII, e sobretudo, durante praticamente todo o século XVIII, pelos membros da família Musschenbroek. Estes estabeleceram-se em Leiden ainda durante o século XVII e deram uma dinâmica extraordinária à indústria dos instrumentos científicos. A qualidade dos seus trabalhos permitiu-lhes adquirir uma aura que se estendeu a todo o continente europeu. Os dois primeiros membros desta família, Samuel e Johan Joosten, notabilizaram-se na cons-trução e invento de variados modelos de instrumentos científicos, em particular de microscópios e de bombas pneumáticas. Jan foi o responsável pela construção dos aparelhos utilizados pelo célebre 's Grave-sande nas suas lições de Física. Todos estes instrumentos foram copiados e reproduzidos por construtores holandeses. Tal como os professores de Leiden, as universidades holandesas foram fortemente influenciadas pela metodologia de ensino da Física Experimental desenvolvida por estes inovadores.

O material científico e didáctico criado pelos holandeses revelava-se robusto e, ao mesmo tempo, carac-terizado por uma admirável harmonia formal. Assim, as soluções para determinados problemas de construção exigiam muita perícia e revelavam um extraordinário gosto artístico. Isto permitia transmitir um certo bem-estar à assembleia que presenciava uma lição de Física. Ainda hoje, os instrumentos científicos construídos no século XVIII, representativos da originalidade do equipamento desenhado pelos Musschenbroek, encantam os que têm o privilégio de os observar.

Mas a Holanda não foi o único país a aproveitar do trabalho notável dos membros desta família. Em França, Jean-Antoine Nollet e Sigaud de La Fond, entre outros, foram fortemente influenciados por estes construtores de instrumentos e divulgadores da Física Experimental. Alguns livros marcantes dos Musschenbroek foram traduzidos em francês. Citemos duas obras de Peter van Musschenbroek traduzidas respectivamente por Sigaud de La Fond, Cours de Physique Experimentale et Mathematique, e por Pierre de Massuet, Essai de Physique com descrição de novos tipos de Machines Pneumatiques et Recueil d' Expériences de Jan van Musschenbroek. Refira-se ainda que a obra Éléments de Physique da autoria de Willem Jacob 's Gravesande foi traduzido por Elie de Joncourt.

Nollet e Sigaud de La Fond desempenharam igualmente um papel importante como difusores da Física Experimental. A sua obra teve o mérito de influenciar de uma forma positiva as metodologias de ensino desta ciência. Nas Leçons de Physique Experimentale de Nollet, uma obra em seis tomos, foi desenvolvida uma perspectiva didáctica fundamental baseada na experimentação. Para o efeito, o autor utilizava ins-trumentos didácticos que punham claramente em evidência as afirmações estudadas, tornando assim as lições muito motivantes.

Por outro lado, Sigaud de la Fond, nos Éléments de Physique Theorique et Experimentale pour servir de suite à la Description et Usage d'un Cabinet de Physique Experimentale, apresentava sugestões de máquinas e apare-lhos propícios ao bom ensino desta ciência. Este investigador e pedagogo, para além de Ancien Profes-seur de Matemática e demonstrador de Física Experimental, foi membro da Société Royale des Sciences de Montpellier, das Academias de Angers, da Baviera, de Valhadolide, de Florença, de S. Petersburgo e de numerosas outras organizações. Até 1824, um grande número de instrumentos adquiridos pelo Gabinete de Física de Coimbra foi concebido a partir das ideias apresentadas por Sigaud de La Fond e por Jean-Antoine Nollet, entre outros autores franceses.

Ressalta dos tratados dos autores que acabamos de mencionar que, para além do ensino da Física, dominava igualmente uma preocupação de obediência a um estilo decorativo capaz de captar a atenção de quem assistia a uma lição desta disciplina. Este facto tinha a virtude de dar aos instrumentos uma verdadeira aparência de obras de arte. Esta preocupação estética devia, no entanto, marcar um ritmo mais ou menos lento de produção dos instrumentos sem que daí resultasse qualquer vantagem do ponto de vista científico. Por outro lado, os custos financeiros de tal forma de produção tornaram-se de tal forma elevados que o processo não pôde continuar. Esta preocupação do bom gosto e do trabalho artístico associados ao desenvolvimento da ciência estava condenada. Os critérios de fabricação dos instrumentos científicos e didácticos passaram a ser fundamentalmente regidos pela eficiência, funcionalidade e precisão. Refira-se que alguns microscópios do século XVIII se apresentavam como objectos de luxo: tratava-se de bronzes elegantes, caixas ricamente trabalhadas, o que não os tornava, por isso, em bons instrumentos de observação.

Devido à falta de técnicos especializados em alguns domínios, recorreu-se à importação de alguns instrumentos de Inglaterra. Foram encomendados a fabricantes de reputação internacional indiscutível. Um dos aspectos mais característicos da indústria inglesa de instrumentos foi o aparecimento no século XVIII de grandes oficinas, se bem que a produção não cobrisse todos os domínios da aparelhagem cien-tífica. Algumas destas oficinas implantaram-se na Europa e igualmente noutros continentes. Destes fabri-cantes devemos salientar os nomes de Francis Watkins, George Adams, Edward Nairne, Edmond Culpe-per, Dollond, James Champnes, Benjamin Martin, Pyefinch.

Uma grande parte dos instrumentos adquiridos em Inglaterra foram destinados originalmente ao Gabi-nete de Física do Colégio dos Nobres. Aquando da extinção deste Gabinete, foram transferidos para Coimbra, simultaneamente com o resto do material pertencente ao Colégio. Os fabricantes ingleses conti-nuaram a beneficiar de preferência para as aquisições destinadas ao novo Gabinete de Física fundado na Universidade de Coimbra.

A oficina de George Adams foi fundada em 1735. Adams era acima de tudo um especialista em Mecânica e dedicou-se à construção de aparelhos de demonstração para gabinetes de Física. A par de instrumentos de desenho e microscópios, largamente representados na sua colecção, apresentava uma gama completa de instrumentos de demonstração das leis da Física. Após a sua morte, em 1773, o seu filho retomou a direcção da oficina. Faleceu em 1795, o que marcou o início de um período de dificuldades para a empresa, que acabou por ser extinta em 1830. O Gabinete de Física da Universidade de Coimbra possui uma magnífica bússola proveniente da oficina de George Adams. Esta bússola é uma das mais belas peças do Museu de Física. Do mesmo fabricante existem uma roda para medir distâncias e um centauro de prata munido de um mecanismo para lançar setas.

Benjamin Martin, outro construtor inglês representado no Gabinete de Física de Coimbra, tornou-se famoso no comércio de instrumentos pelo grande número de modelos de microscópios que construiu. Foi, aliás, um dos primeiros a modificar os seus aparelhos em função do aperfeiçoamento da Mecâ- nica, o que lhes conferiu especial qualidade. Para além de microscópios, este construtor notabilizou-se na construção de octantes e de telescópios de reflexão. Utilizava, na fabricação de planetários, sistemas de movimento de relojoaria de sua invenção. A sua reputação de excelente construtor contribuiu para assegurar uma larga difusão de instrumentos não só em Inglaterra, mas por todo o continente europeu. Na soberba colecção de Coimbra figura, por exemplo, uma máquina electrostática de seu fabrico.

Descendente duma família de protestantes franceses emigrados, John Dollond iniciou a sua actividade de construtor de instrumentos científicos em 1758. Notabilizou-se na fabricação comercial de objectivas acromáticas. Após a sua morte, em 1761, sucedeu-lhe seu filho Peter Dollond, que conseguiu manter os seus produtos em níveis de excelente qualidade. Dos instrumentos fabricados por Dollond, desta-cam-se grandes quartos de círculo e círculos astronómicos, telescópios equatoriais, teodolitos. A Uni-versidade de Coimbra possuía, deste fabricante, um magnífico telescópio acromático de seis lentes, que foi levado pelos franceses durante a ocupação pelo exército de Massena.

Edward Nairne, que nasceu em 1726, é outro construtor representado no Gabinete de Física de Coimbra. Entre os instrumentos que fabricou e comercializou havia microscópios, telescópios, bombas pneumáticas, sextantes, instrumentos de matemática, teodolitos e sobretudo máquinas electrostáticas e instrumentos de navegação. Refira-se que este construtor produziu uma abundante literatura comercial através da qual promovia os seus produtos. O Gabinete de Física de Coimbra possuía três máquinas electrostáticas de globo de vidro de Edward Nairne. Actualmente, restam apenas duas destas máquinas, que são idênticas. De Edward Nairne existe igualmente em Coimbra uma máquina electrostática cuja peça móvel é um cilindro de vidro; esta máquina foi concebida para usos médicos.

Para além dos anteriormente citados, outros construtores ingleses estão representados na colecção. Trata--se de Edmond Culpeper, do qual o Gabinte possui um microscópio datado de 1731, e de James Champnes. Deste fabricante, o Gabinete possuía um barómetro de grandes dimensões fixo numa prancha de madeira e um termómetro de mercúrio com uma escala Fahrenheit dividida em 700 partes, das quais 100 abaixo de zero.

As primeiras aulas dadas no novo Gabinete de Física da Universidade de Coimbra foram aulas teóricas. Alguns dias mais tarde, mais propriamente no dia 22 de Maio de 1772, começou a fase das experiências. Disso nos dá notícia D. Francisco de Lemos numa carta em que comunica o grande acontecimento ao marquês de Pombal. A sua narrativa testemunha o grande "fogo e ardor" com que os estudantes assistiram à primeira sessão de experiências.

Tal como o exigiam os estatutos, "Mando ao Professor desta Cadeira, que cuide logo em ordenar, compôr, e dar à estampa hum Compendio proprio, e adequado para as liçoens publicas", dalla Bella procedeu à redacção do seu curso de Física. Este foi, no entanto, um trabalho moroso. Os primeiros dois volumes só foram concluídos em 1789 e o terceiro em 1790. Na Congregação da Faculdade de Filosofia de 30 de Janeiro de 1789 foi lido um aviso régio, que aprovava uma parte do compêndio de Física da autoria de João Antonio dalla Bella, sendo o resto aprovado em 8 de Maio da 1790. Este compêndio intitulado Physices Elementa, redigido em latim, consta de três volumes com as dimensões 13,5 x 20,5 cm, compondo-se na totalidade de 1168 páginas e contém 37 folhas desdobráveis com 262 gravuras.

No período compreendido entre a fundação do Gabinete de Física até à data em que foi aprovado o livro de dalla Bella, o compêndio adoptado era o de Musschenbroek, que de resto serviu também como importante referência para a construção da magnífica colecção de instrumentos com que o Gabinete foi inicialmente equipado.

João Antonio dalla Bella deixou de ensinar no ano escolar de 1785-1786, sendo substituído no serviço docente por Teotónio Brandão, Ribeiro de Paiva e Constantino Botelho de Lacerda.

Em 24 de Janeiro de 1791 Costantino António Botelho de Lacerda, natural de Murça, foi nomeado lente de Física Experimental, lugar que ocupou até à sua morte em 1820, sem ter chegado a jubilar-se. Este professor publicou várias memórias científicas, que apareceram em diferentes jornais e nas colecções da Academia Real das Ciências de Lisboa, revelando-se um sábio distinto que muito honrou a Universidade. O seu ensino da Física Experimental grangeou-lhe uma grande reputação. Era infatigável nos seus trabalhos de investigação científica no Gabinete de Física, sobressaindo a sua competência em assuntos de Mecânica. Por outro lado, era também muito dedicado a estudos de agricultura e publicou neste domínio vários artigos científicos.

No dia 9 de Julho de 1791, Botelho de Lacerda foi encarregado pelo Conselho da Faculdade de Filosofia de traduzir em latim a obra de M. l'Abbé Haüy Exposition raisonnée de la Theorie de l'electricité et du magnetisme d'après les principes de M. Aepinus.

O Gabinete de Física beneficiou extraordinariamente da sua incansável dedicação. No dia 14 de Janeiro de 1807, teve lugar na sala deste Gabinete a Congregação da Faculdade de Filosofia. Resultou desta reu-nião, entre outras, a seguinte deliberação: "3º que para o augmento do Gabinete de Physica se mandem modelar algumas Machinas, que importantemente são empregadas nos usos das Artes."

Sob a direcção de Botelho de Lacerda, o Gabinete de Física conheceu um importante desenvolvimento, concretizado pela aquisição de novos instrumentos. Durante este período, o fornecedor principal foi o fabricante Jacob Bernard Haas, que possuía uma fábrica de instrumentos científicos em Lisboa. No estrangeiro, estabeleceram-se contactos com os fabricantes William e Samuel Jones, conhecidos como excelentes fabricantes que exerciam a sua actividade em Londres.

Se por um lado Botelho de Lacerda se empenhou profundamente no desenvolvimento do ensino da Física Experimental em Coimbra, também é verdade que este professor presenciou uma das mais tristes páginas da história do Gabinete. Durante a sua gestão, este sofreu uma perda que o tempo não conseguiu reparar. Por ocasião da ocupação francesa, o exército de Massena entrou em Coimbra no dia 30 de Setembro de 1810 e, no dia 2 de Outubro, foram levados pelos invasores um óculo astronómico, um óculo de Galileu e dois magníficos microscópios que haviam sido comprados em Inglaterra aos fabricante W. e S. Jones. Destes fabricantes o Gabinete de Física possui ainda magníficos exemplares cuja aquisição se deu nos fins do século XVIII e princípios do XIX.

José Homem de Figueiredo Freire, autor do Catálogo dos instrumentos com que tem sido aumentado o Gabinete de Physica da Universidade desde o ano de 1792 até ao presente de 1824, sucedeu a Constantino Botelho de Lacerda na direcção do Gabinete de Física. Este catálogo testemunha uma forte dinâmica de actualização do Gabinete de Física através da aquisição de equipamento moderno.

Os progressos da Física no século XIX foram extraordinários. A acção mecânica do vapor e as suas prodigiosas aplicações, as maravilhas da Acústica, os telégrafos eléctricos, a polarização da luz e outros fenómenos ópticos, a construção cada vez mais perfeita de microscópios e telescópios, a fotografia, as descobertas admiráveis realizadas no domínio da Mecânica, da Electricidade e do Magnetismo, e final-mente os progressos e benefícios incalculáveis da Meteorologia, tudo demonstra a extrema importância de tão vasta e interessante ciência.

Os rápidos e incessantes progressos das ciências tornaram cada vez mais urgente uma nova organização do Curso Filosófico. Esta evolução desembocou nas reformas de 1836 e 1844, sem que o ensino da Física Experimental daí saísse muito beneficiado. Para que a qualidade do ensino atingisse o nível do dos países mais desenvolvidos da Europa, era de extrema urgência reorganizar o curso por forma a ampliar e a melhorar o ensino desta ciência tão importante. A antiga estrutura, ordenada pelos Estatutos de 1772, era imprópria para garantir um nível de qualidade, no ensino da Física Experimental praticado em Coimbra, comparável ao observado noutros países. Os meios de observação e de investigação dos fenómenos multiplicavam-se e aperfeiçoavam-se de tal forma, que era impossível manter por mais tempo o plano primitivo da Faculdade.

A preocupação de ministrar um ensino verdadeiramente experimental exigia uma constante actualização dos docentes. As viagens científicas realizadas pelos professores do Gabinete de Física ao estrangeiro permitiram-lhes estabelecer um contacto estreito com a investigação moderna e com os novos métodos de ensino praticados na Europa. Este facto teve uma influência na qualidade e quantidade de instrumentos que enriqueceram o Gabinete. As ciências "philosophicas" perderam gradualmente a feição especulativa e a supremacia teórica que dominava as antigas escolas. O ensino prático tendia a desenvolver-se, como o exigiam o espírito da época, as tendências da civilização e os interesses da sociedade. A Química e a Física continuavam a exercer uma influência directa na prosperidade das nações. Pelo seu carácter eminentemente experimental, estas ciências exigiam gabinetes e laboratórios convenientemente equipados.

A década de cinquenta do século XIX foi assinalada pelo início de uma intensa actividade, da qual resultou uma significativa evolução do Gabinete de Física e do ensino da Física Experimental em Coimbra. A 21 de Julho de 1855, a Congregação aprovou um parecer relativo a uma reforma dos estudos filosóficos, que afirmava:

Quando por toda a parte os povos dirigem as suas vistas para os melhoramentos materiais, quando todas as nações do mundo civilisado estão dando a máxima importância ao estudo das ciências philosophicas, como fonte primordial d'estes melhoramentos, seria com effeito para estranhar que o primeiro estabelecimento scientifico do reino ficasse estacionario no meio d'este movimento geral, e que a Faculdade de Philosophia manifestasse pouco empenho em se elevar à altura do seu glorioso destino.

E mais adiante:

Os rapidos e avantajados progressos, que a physica tem feito no presente século, não consentem que este ramo se possa estudar, ainda que mui perfunctotiamente seja, em um curso annual. Os tratados do calorico, da luz, da electricidade e do magnetismo são tão avultados, que dariam materia de sobejo para constituirem outras tantas cadeiras especiaes. D'uma tal vastidão de doutrinas ha de necessariamente resultar, como sempre tem acontecido, que os alumnos fiquem ignorando completamente alguns d'elles, a despeito de todos os esforços e diligencias do respectivo professor, que para adiantar o compêmndio, se vê as mais das vezes obrigado a explicar toda a hora, com grave prejuizo não só da disciplina, mas também do proveitamento dos mesmos alumnos.

Neste relatório, o governo é alertado para o facto de que pouca ou nenhuma utilidade teriam as ciências, se servissem somente para ilustrar o entendimento e satisfazer a vaidade científica do homem. A principal vantagem do conhecimento científico residiria sempre na influência sobre o progresso da indústria e o bem estar da sociedade. A sociedade não retiraria nenhuma vantagem destes estudos se eles se reduzissem unicamente à parte teórica. Os progressos incessantes de todos os ramos da indústria e as tendências da época exigiam que o ensino se concretizasse em aplicações. Verificou-se ser indispensável que o ensino da Física em Coimbra saísse da situação limitativa em que se encontrava. O pouco tempo que lhe estava reservado no plano de estudos impedia que os métodos da Física Experimental fossem ensinados de acordo com o desenvolvimento até então observado nesta ciência. O seu ensino havia-se tornado demasiado elementar. Os meios de acção para que a observação e a experiência constituíssem uma metodologia eficaz de transmissão de conhecimento resultavam impraticáveis. Para este estado de coisas, contribuía principalmente a falta de meios pecuniários, que impedia um desenvolvimento da Física Experimental condigno com a história do próprio Gabinete.

Em 1861 tiveram lugar grandes transformações no ensino da Física Experimental em Coimbra. A partir deste ano o Curso Filosófico viu-se contemplado com duas cadeiras de Física no seu plano de estudos. Os nomes dos professores Mathias de Carvalho, Jachinto de Sousa e António dos Sanctos Viegas devem ser reconhecidos como os seus principais impulsionadores. Esta reforma reflectiu-se de maneira positiva na qualidade do ensino e na prática.

As viagens de estudo realizadas por estes professores a diferentes países da Europa foram determinantes para concretizar o projecto de desenvolvimento do Gabinete. Estas deslocações ao estrangeiro tinham por objectivo entrar em contacto com reputados fabricantes de instrumentos, cientistas e professores de Física Experimental em diversas escolas europeias.

O esplendor e riqueza dos magníficos instrumentos com que o Gabinete foi fundado manteve-se durante décadas.É natural que ao longo do tempo alguns dos exemplares valiosos tenham desaparecido. O uso descuidado de alguns dos aparelhos mais frágeis e delicados levou à sua inutilização. Teria, no entanto, sido pouco o cuidado em consertar ou restaurar os instrumentos que se iam danificando. Por outro lado, o desenvolvimento do Gabinete deu origem a algumas transformações que o iam desfigurando, relativamente à sua forma original. No fim do ano de 1851, o Professor António Sanches Goulão, então seu Director, procedeu a uma reorganização de todo o material existente, redistribuindo-o sem um critério que permitisse manter os instrumentos do século XVIII em lugar de destaque. Esta reorganização deu lugar a um novo inventário (1851), que atribuiu novos números de identificação aos antigos instrumentos. Este catálogo, no entanto, refere o número de inventário antigo e indica o novo número de identificação. Por outro lado, o material inutilizado foi posto fora de uso e abatido ao inventário. São perto de 200 aparelhos que nesta época se perderam para a colecção pombalina, como dá notícia o Pro-fessor Mário Silva, no ano de 1938 [cfr. neste Catálogo, pp. 25 a 31].

Para além destes primeiros golpes, que a colecção de instrumentos do século XVIII sofreu nos anos quarenta do século XIX, outros bem mais profundos viriam contribuir para o empobrecimento do nosso património científico e cultural. Como vimos, a partir dos anos cinquenta fez-se sentir um movimento intenso no sentido da modernização do Gabinete de Física. A dinâmica dos tempos assim o exigia. Como resultado desta actividade, os majestosos instrumentos pombalinos foram considerados desenquadrados e foram sucessivamente retirados dos locais onde há cerca de um século se mantinham guardados. O des-tino que os aguardava, foi o de serem amontoados numa arrecadação do edifício, votados ao mais com-pleto abandono, como se de coisas inúteis se tratasse.

Com a aquisição de moderno equipamento científico, começou a sentir-se necessidade de espaço. Foi assim que se chegou ao momento mais negro da história do museu pombalino. Em 1911, Henrique Teixeira Bastos, então Director do Gabinete, conseguiu que o Conselho da Faculdade o autorizasse a desfazer-se daquilo que considerava material inútil, procedendo à sua venda num leilão realizado junto à porta do edifício. Com esta operação conseguiu esvaziar as salas que haviam servido de arrecadação, sendo estas, posteriormente, transformadas em salas de aula.

Porém, o rumo dos acontecimentos viria a mudar por volta do ano de 1938. Nesta época Mário Silva encetou um louvável trabalho de recuperação daquilo que ainda restava do que teria sido um excelente Gabinete de Física Experimental do século XVIII. Não restava mais do que uma centena dos cerca de 580 aparelhos que haviam equipado o Gabinete original. Estes foram o objecto de restauro e recuperação por parte deste ilustre professor. Tendo conhecimento da venda realizada em 1911, prontificou-se a esta-belecer contactos no sentido de reaver para o Gabinete de Física tão valiosas peças. Desta sua importante actividade elaborou um cuidadoso relatório, que serviu de comunicação apresentada à Academia das Ciências de Lisboa em Junho de 1938. Esta comunicação foi posteriormente impressa nas "Publicações do Laboratório de Física da Universidade de Coimbra" em 1939. Este trabalho mereceu da parte do Governo Português um reconhecimento oficial.

Actualmente, para além do que resta da esplendorosa colecção de instrumentos do século XVIII, a Universidade de Coimbra possui uma magnífica colecção de instrumentos de Física do século XIX que merece um profundo trabalho de investigação por parte daqueles que se interessam pela história e metodologia do ensino da Física Experimental.


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