O Museu Pombalino de Física
da Faculdade de Ciências de Coimbra *


Mário A. Silva

Existe, hoje, integrado no património da Universidade de Coimbra, um precioso Museu de Física, do século XVIII, único no Mundo. Encontra-se descrito no trabalho: Um Novo Museu em Coimbra -; o Museu Pombalino de Física da Faculdade de Ciências da Universidade, que tive a honra de apresentar numa comunicação feita à Classe de Ciências da Academia das Ciências de Lisboa, em Junho de 1938, e veio a ser publicado no n.º 1 do vol. VIII da Revista da Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra, por decisão do respectivo Conselho Escolar. Este trabalho teve a sua origem no seguinte relatório que, um ano antes, em 3 de Junho de 1937, eu havia dirigido ao director da Faculdade:

«Ex.mo Senhor Director da Faculdade de Ciências

«Julgo da maior importância levar ao conhecimento de V. Exª. alguns factos que ultimamente foi possível averiguar e me conduziram a considerar uma questão de verdadeiro interesse universitário. Referem-se estes factos à história do antigo «Real Gabinete de Physica da Universidade de Coimbra».

«Tem este gabinete, de que o actual Laboratório de Física, da Faculdade de Ciências, foi o natural herdeiro, uma história digna do melhor apreço. Foi criado nos fins do século XVIII, logo a seguir à grande reforma pombalina de 1772, com tal magnificência e com uma tal variedade de material científico que o próprio Marquês de Pombal, em carta dirigida ao então Reitor D. Francisco de Lemos, lhe recomenda toda a atenção para o Gabinete, "visto ser o melhor da Europa, melhor do que o de Pádua (acentua bem o Marquês) que possui apenas 400 máquinas, quando o nosso possui mais de 500".

«Para instalar e dirigir o Gabinete, o Marquês de Pombal contratou o célebre professor italiano João António dalla Bella que foi, por esta circunstância, o primeiro professor de Física da Faculdade.

«Sobre a actividade docente e científica de dalla Bella existem no laboratório diversos documentos, e entre eles interessa-nos salientar os dois seguintes: um Tratado de Física, em 3 volumes, redigido em latim, com o título: «Physices Elementa, usui Academiae Conimbricensis accommodata», e o Catálogo, manuscrito, redigido também em latim, de todas as máquinas e aparelhos do Gabinete, com o título: «Index Instrumentorum, ad Physicam experimentalem pertinentium, quae in Museo Conimbricensi modo reperiuntur». Foi este Catálogo, sabiamente redigido, apresentado por dalla Bella à Congregação da Faculdade, na sua sessão de 26 de Julho de 1788, poucos anos depois da sua vinda para Coimbra.

«Para nós, é hoje particularmente valioso este Index Instrumentorum. Dá-nos uma ideia exacta do que foi o antigo Gabinete de Physica de dalla Bella; não é uma simples enumeração do material existente, pois cada aparelho é descrito com todos os pormenores e quase sempre com a indicação dos textos e das gravuras dos livros da época em que vêm referidos modelos análogos. Se não fosse isto, e daí realmente o seu interesse para nós, não nos seria possível, hoje, avaliar o valor e a riqueza do recheio do primeiro Laboratório de Física da nossa Universidade. É que se deu aqui o que aconteceu com tantos outros inestimáveis valores do nosso património cultural. Em vez de ter havido o cuidado de tudo conservar na sua forma primitiva, pelo contrário, parece quase ter havido o propósito de tudo inutilizar, para que nada pudesse ficar de um passado julgado, talvez, sem interesse. Manda contudo a verdade histórica que se diga que deste estado de coisas não são responsáveis os dois primeiros directores que dirigiram o Gabinete a seguir a dalla Bella. São eles, em primeiro lugar, o Dr. Constantino Botelho de Lacerda Lobo, e depois dele, o Dr. José Homem de Figueiredo Freire. Tudo foi, no seu tempo, conservado, até mesmo a antiga catalogação e arranjo dos aparelhos nos armários, como se verifica pelo catálogo que nos foi deixado pelo Dr. Figueiredo Freire.

Verifica-se, com efeito, que, tendo tido este professor necessidade de inventariar o novo material adquirido no seu tempo e no tempo do Dr. Lacerda Lobo, não quis tocar na instalação dos aparelhos de dalla Bella, e preferiu, antes, fazer uma instalação semelhante à de dalla Bella numa outra sala, ao lado da sala pombalina. Quem, hoje, percorrer estas duas antigas salas, pode ter, à simples vista, a impressão de que são iguais, com mobiliário semelhante, e ambas construídas e arranjadas na mesma época. É fácil, porém, verificar que, em muitos pormenores, são diferentes, sendo mais rica e cuidada aquela em que dalla Bella instalou o seu gabinete.

«Proponho assim que esta última passe a chamar-se Sala de dalla Bella, e a outra, Sala do Dr. Figueiredo Freire.

«Diga-se agora, de passagem, que o material descrito pelo Dr. Figueiredo Freire já não é parecido com o de dalla Bella, não tem o mesmo valor científico nem o mesmo valor artístico, este, sobretudo, notável em todo o material pombalino. Apesar de mais recente, o material do Dr. Figueiredo Freire teve, contudo, a mesma sorte do material de dalla Bella: sofreu as mesmas mutilações, os mesmos maus tratos, as mesmas devastações. Tudo isto se deu, com efeito, a seguir à direcção do Dr. Figueiredo Freire, sem qualquer reacção sensível por parte de algum director.

«Foi o Dr. Sanches Goulão o primeiro a dar a machadada irreverente no precioso Gabinete de Physica confiado à sua guarda. Começou por pôr de parte as duas catalogações dos seus antecessores; entendeu que devia misturar todo o material, e dar novo arranjo e colocação às máquinas e aparelhos, sem talvez reparar que todo o material antigo tinha profundamente gravadas com números e letras as respectivas indicações do Index Instrumentorum. Por este modo, ficaram os aparelhos com marcações gravadas, diferentes das indicadas no novo catálogo. Por outro lado, verifica-se, e isto é o mais grave, que aproximadamente 200 aparelhos e máquinas antigas não estão descritas no novo Catálogo do Dr. Sanches Goulão, naturalmente porque tinham sido inutilizadas e, contrariamente ao que deveria ter sido feito, não foram reparadas ou restauradas.

«A seguir ao Dr. Sanches Goulão, dirigiu o Dr. Jacinto António de Sousa. Produzem-se os mesmos fenómenos, é feito novo inventário do material, nova numeração das máquinas sem relação com as anteriores, e verifica-se novo desaparecimento de material. Acresce que o catálogo deste director já quase não dá uma ideia do material antigo de dalla Bella; há indicações erradas, nomes estropiados, erros de doutrina. O valor histórico do material antigo é, assim, desvirtuado ou completamente esquecido.

«Vem em seguida, a direcção do Dr. António dos Santos Viegas. Mantém este director o estado de coisas anterior. Nenhuma reacção se nota contra a indiferença a que tinha sido, e portanto continuava a ser, votado o antigo material; por outro lado, igualmente se conclui, embora este director não tenha deixado inventário seu, que a inutilização e os estragos do material continuam, reduzindo-se assim, cada vez mais, a riquíssima colecção de dalla Bella.

«Finalmente, e já em nossos dias, toma conta da direcção do laboratório, o Dr. Henrique Teixeira Bastos. Foi encontrar, este director, nas salas do rés-do-chão do Laboratório, os tristes resultados da indiferença dos seus antecessores: o material, partido e inutilizado, tinha sido, com efeito, amontoado pouco a pouco, à medida da sua inutilização, nestas salas que então serviam de armazém. Intervém, agora, a acção do Dr. Teixeira Bastos; se, por um lado, felizmente, com o Dr. Teixeira Bastos é detida a onda de destruição que ameaçava fazer desaparecer, por completo, o Gabinete de dalla Bella, por outro lado, infelizmente, consegue este director, em 1911, que a Faculdade o autorize a desfazer--se, por venda, de tudo o que se encontrava partido, enchendo as referidas salas do rés-do-chão, julgadas necessárias, para que nelas pudessem ser dadas as aulas práticas das diferentes cadeiras de Física, impostas pela nova Reforma das Faculdades de Ciências que então acabava de ser publicada. À porta do Laboratório foi feito espalhafatoso leilão, e ainda existem, no Laboratório, os documentos da venda efectuada e do irrisório preço por que tudo foi leiloado - ferros artísticos, metais primorosamente trabalhados, ricas madeiras do Brasil... Foi um rude golpe, porque muito desse material poderia ter sido reparado, restaurado, e voltar, portanto, a ocupar o seu primitivo lugar na colecção de dalla Bella. Se assim se tivesse feito, que magnífico, que extraordinário Museu de Física do século XVIII teríamos, hoje, na nossa Faculdade!

«Estes são, senhor Director, os factos que, mesmo sem qualquer outra preocupação, dada apenas a minha actual situação de Director do Laboratório, eu tinha o dever de expor a V. Ex.ª; mas não foi apenas para os relatar que resolvi dirigir-me a V. Ex.ª. Penso, com efeito, que se não é possível reconstituir completamente, em virtude do que acabo de referir, o antigo e valioso Gabinete de dalla Bella, dada a perda definitiva de muitas máquinas e aparelhos, pode contudo tentar-se uma reconstituição parcial.

«Existe, em primeiro lugar, no Laboratório ainda algum material que, depois de estudado e identificado com a ajuda do Index Instrumentorum, pode ser facilmente reparado. Por outro lado, uma parte, embora reduzida do material vendido, encontra-se ainda nas mãos dos seus compradores. Sendo assim, quanto ao primeiro, há que aproveitar a boa vontade e a competência técnica do pessoal do Laboratório, e efectuar, sem demora, a referida reparação; quanto ao segundo, e visto que se trata de material de incontestável valor histórico, parece-me indicado que seja urgentemente readquirido e, como o anterior, devidamente reparado. Não possui, contudo, o Laboratório verba suficiente para empreender obra tão dispendiosa, comprando tudo o que possa ainda ser encontrado.

«Proponho, nestas condições, que a Faculdade empreenda as necessárias negociações para que nos seja concedida essa verba, junto da entidade que, a meu ver, mais poderá interessar-se por este caso em que está em jogo um património cultural do mais alto interesse: A Junta Nacional de Educação.

Coimbra, 3 de Junho de 1937                                                                  Mário Augusto da Silva»

Este relatório foi apresentado em Congregação da Faculdade que resolveu aprová-lo, e pedir a verba indicada. A verba não foi concedida, mas o trabalho não deixou de ser feito, e o Museu veio, um ano mais tarde, a ser construído e a ser instalado na sala pombalina, tal como é referido no citado trabalho: Um Novo Museu em Coimbra - o Museu Pombalino de Física da Faculdade de Ciências da Universidade .

O caso teve, finalmente, consagração oficial com a publicação da seguinte portaria, que só se reproduz aqui pelo único facto de justificar e, portanto, de algum modo apoiar os termos em que é redigido o relatório e, sobretudo, os fins que nele haviam sido propostos:

«Manda o Governo da República Portuguesa, pelo Ministro das Finanças, dar público testemunho de louvor ao Professor Catedrático da Universidade de Coimbra, MÁRIO AUGUSTO DA SILVA, pelo grande interesse demonstrado na organização do cadastro dos bens afectos ao Laboratório de Física, que dirige, e por haver, depois de por-fiados esforços, conseguido reconstituir, em parte, a antiga colecção de Física da Faculdade de Filosofia, proveniente do Real Colégio dos Nobres, recolhendo instrumentos dispersos e adquirindo outros que haviam sido vendidos, dando, deste modo, um exemplo eloquente de dedicação por esta parte do Património do Estado.»

Ministério das Finanças, em 14 de Março de 1942

Pelo Ministro das Finanças,

(a)Luís Supico Pinto

Estamos, agora, em 1963, à distância, pois, de um quarto de século da instalação do Museu. Continua a existir, tal como o deixei, em 1947, e agora mercê do interesse e da dedicação que por ele também tomou o actual director do Laboratório de Física, Prof. Dr. Almeida Santos, a quem apresento, neste lugar, os meus reconhecidos agradecimentos. O pior é que começam a levantar-se, de vários lados, ameaças de novas destruições. Prepara-se, na verdade, nova machadada no precioso museu, desta vez desferida sobre a própria Sala de dalla Bella - e também sobre a Sala, contígua, do Dr. Figueiredo Freire - trans-formando-as e adaptando-as a outros serviços da Faculdade. Não queremos, claro, discutir o interesse incontestável que há em construir na nova Cidade Universitária um outro edifício para instalar condignamente o que deverá ser o novo Instituto de Física da Universidade, transferindo para lá os serviços do actual Laboratório. Mas, porventura, tal interesse não será compatível com a conservacão do que foi o primeiro, e riquíssimo, Gabinete de Physica da Universidade de Coimbra? Porquê e para quê destruir o passado? Para quê, entregar a outros serviços da Faculdade, que, aliás, dispõem de outras amplas instalações, salas que hoje são museus e, portanto, devem permanecer tal como estão, e como foram concebidas e construídas pelos seus ilustres autores?

Ousamos esperar que os actuais responsáveis pela conservação e integridade do nosso património, cum-prindo as suas obrigações, saibam deter a tempo o braço sacrílego que ousar levantar-se para cometer o desacato (para não dizer outro nome) que seria destruir a Sala de dalla Bella, obrigando, por esse modo, a retirar do seu ambiente histórico - próprio e único - a valiosa colecção pombalina.

Ousamos, realmente, esperar que assim seja. Que desta vez, pelo menos, o espírito mau que fez arrasar o edifício do Observatório Astronómico do Pátio da Universidade - que havia sido construído em 1790 sob a proficiente direcção do insigne lente de Astronomia, Dr. Monteiro da Rocha, e por isso constituía um marco histórico altamente significativo no passado, por tantos títulos notável, do ensino da Astro-nomia em Portugal - não possa aqui executar a mesma obra sinistra de destruição. Mas se o desacato for praticado, aqui ficam os nossos protestos, e a declaração de que, sejam quais forem as razões invocadas, nunca nos conformaremos com mais essa mutilação a juntar a tantas que, infelizmente, têm sido cometidas.

Coimbra, 8 de Maio de l963.                                                                  Mário A. Silva

* Artigo publicado em Seara Nova, nº 1414, Agosto de 1963, pp. 199-201.

(a)Publicada no Diário do Governo, n.º 63 da 2.ª Série, de 18 de Março de 1942.


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