Dos mistérios da pedra de magnésia
à delimitação de um domínio científico


Maria da Conceição Ruivo

A misteriosa atracção entre a magnetite e o ferro era conhecida desde a Antiguidade. Pensa-se que terão sido os Chineses os primeiros a explorar esta propriedade, tendo, nos finais do século XI, inventado a agulha magnética, por sua vez aplicada à navegação pelos Árabes. De facto, a agulha magnética cedo se tornou num auxiliar precioso para os marinheiros, pois, posta a flutuar na água ou a girar sobre um mapa, permitia-lhes registar a sua posição em relação às estrelas. A prática de desenhar uma rosa dos ventos sob a agulha guardada numa caixa generalizou-se. A bússola passou a ser conhecida no mundo ocidental no século XII.

O conhecimento do magnetismo está intimamente ligado a necessidades de ordem prática e, como seria de esperar, muitas descobertas se devem às observações dos marinheiros e dos construtores de aparelhos. Talvez por isso a datação e a atribuição das descobertas neste campo é tantas vezes controversa. É o caso da declinação magnética, cuja descoberta data do século XV e é geralmente atribuída a Cristóvão Colombo (1492). Alguns historiadores associam-na, no entanto, aos construtores de quadrantes solares de Nuremberga, e outros a marinheiros anónimos da primeira metade do século XV. O reconhecimento da inclinação magnética e o estudo das suas variações locais tem lugar no século XVI e está-lhe associado o nome de um navegador e construtor de aparelhos, o inglês Robert Norman, cerca de 1590. Houve, todavia, precursores e contemporâneos de Norman que se debruçaram sobre este fenómeno, embora os seus trabalhos não tenham alcançado a profundidade e impacte dos deste autor.

Vem a propósito um breve apontamento sobre a obra dos Portugueses do século XVI. Luís de Albuquerque, no seu livro Crónicas de História de Portugal (1987), refere-se, em particular, ao rigor das observações feitas por D. João de Castro (1535-1538), aos instrumentos concebidos por Francisco Faleiro (1535) e por Pedro Nunes (1537) e à obra de João de Lisboa. Ainda segundo este estudo, João de Lisboa, no seu Tratado da Agulha de Marear, publicado em 1514, dedica-se, em particular, ao estudo da declinação magnética, procurando estabelecer uma relação de proporcionalidade simples entre o ângulo de declinação e a longitude. Francisco Faleiro, que foi, segundo Luis de Albuquerque (op. cit.), o primeiro autor a referir a inclinação magnética em livro publicado em 1535, admite igualmente uma relação entre o ângulo de inclinação e a latitude. Todavia, a teoria não se ajustava convenientemente aos dados da observação. Na verdade, estas hipóteses enfermavam do erro de admitir uma grande simetria e regularidade nas variações locais dos ângulos de declinação e de inclinação, erro compreensível dado que o conhecimento das variações temporais destes ângulos é uma aquisição do século XVII. A inconsistência da hipótese de João de Lisboa motivou D. João de Castro a realizar observações rigorosas sobre o ângulo de declinação, quando da sua viagem à Índia em 1538. Com base nos elementos recolhidos concluiu, em particular, que não existia uma relação constante e simples entre declinação e longitude e descobriu outras propriedades importantes do magnetismo terrestre. Infelizmente, os roteiros de D. João de Castro ficaram inéditos pelo que os seus ensinamentos não tiveram a repercussão devida.

A construção de aparelhos e o conhecimento empírico do magnetismo precedeu, como em muitos outros casos, o entendimento dos princípios que lhes estão subjacentes. A partir da Renascença, a preocupação com a medida está cada vez mais presente, tendo em vista, nomeadamente, o estabelecimento de métodosseguros para determinar a longitude e a latitude. No entanto, a própria necessidade de dotar os instrumentos de uma maior precisão, impunha a delimitação de um domínio científico, a construção de uma teoria.

As primeiras explicações para as estranhas propriedades da pedra magnética remontam aos Gregos, que as atribuíam a uma influência não material e etérea, a troca de eflúvios. O mesmo tipo de explicação era dado para a atracção entre o âmbar e os corpos leves. Tales de Mileto (século VI a. C.) terá sido o primeiro a chamar a atenção para uma analogia entre magnetismo, electricidade e gravidade. No entanto, durante séculos, nada de novo surge no que respeita à compreensão destes fenómenos. Por muito tempo irão surgir tentativas de explicação científica mescladas de mitos e de fábulas de marinheiros sobre montanhas magnéticas malditas, como a montanha submersa próximo da ilha de Bornéu, que atrairia o ferro dos navios fazendo-os naufragar. À pedra magnética serão atribuídas virtudes curativas (como, aliás, mais tarde à electricidade). Do ponto de vista teórico, o íman estará, enfim, durante muito tempo, submerso numa aura de maravilhoso e de sobrenatural, apesar das aplicações práticas de que, empiricamente, se vai tirando partido.

No entanto, já na Idade Média o monge francês Pierre de Maricourt (século XIII) esboça uma primeira sistematização de fenómenos magnéticos fundamentais, com base na experiência. É o primeiro a propor uma analogia magnético-astronómica, com o que isso implica de atribuir ao magnetismo um certo tipo de racionalidade. Uma pedra magnética, talhada em forma de esfera, que toma a direcção do eixo da esfera celeste é, de alguma forma, um análogo dessa esfera. Maricourt estabelece com base na experiência (quebra de um íman em dois) a existência de dois pólos num íman, reunidos por um eixo.

A obra de Maricourt, todavia, não fez escola, embora tenha tido sucessores que retiveram algumas das suas ideias. Com efeito, o primeiro estudo sistemático sobre o magnetismo deve-se a William Gilbert (1540-1603) e está expresso na sua obra De Magnete, publicada em 1600. A grande importância da obra de Gilbert deve-se ao facto de, em vez de especular sobre a natureza dos fenómenos magnéticos, os ter tomado como objecto de experimentação. As teorias, observações e experiências conhecidas na época, em particular as de Pierre de Maricourt, são criteriosamente revistas por Gilbert, que, para além de realizar experiências originais, repetiu, com fins de verificação, experiências relatadas por outros autores. Bem informado sobre os fenómenos de declinação e inclinação magnéticas, Gilbert vai debruçar-se, em particular, sobre este último tendo concebido, inclusivamente, um instrumento para sua medição. Das suas experiências vai retirar consequências profundas acerca da natureza do magnetismo terrestre.

O núcleo central em torno do qual se estabelece a obra de Gilbert é a sua conjectura de que a Terra é, ela própria, um grande magnete. Para a testar, realizou uma experiência particularmente interessante, utilizando um magnete esférico que seria uma réplica da Terra e a que chamou terrella. A experiência consistia em observar os efeitos sentidos por uma agulha magnética em diferentes posições relativamente à terrella e levou-o a conclusões onde alguns autores pretendem encontrar um conceito embrionário de campo. Este conceito só será, no entanto, formulado claramente por Faraday no século XIX e, posteriormente alargado a outro tipo de interacções, irá desempenhar um papel fundamental na física moderna.

Na obra de Gilbert são compilados criticamente os conhecimentos até então existentes sobre magnetismo e sobre electricidade e, pela primeira vez, é feita uma distinção clara entre estes dois campos. A teoria dos eflúvios é revista e criticada, não sendo, para Gilbert, atribuível aos fenómenos magnéticos. Todas as propriedades magnéticas resultam, não da matéria de que a Terra é constituída, mas da forma astral que Deus lhe deu. Esta força magnética primária é característica de cada astro, é como que uma espécie de alma, uma alma com capacidades superiores à alma humana, pois exerce continuamente a sua acção sem erros, sem doenças. A virtude magnética de um corpo estende-se pelo espaço que o rodeia e modifica-o. Com base nesta ideia, Gilbert procurou explicar fenómenos do âmbito da astronomia, como a rotação da Terra em torno do seu eixo, embora distinguisse entre atracção magnética e gravidade e não admitissse um movimento de translação da Terra, segundo o modelo de Copérnico. Em suma, Gilbert delimitou um espaço específico para o magnetismo, tornando-o objecto de experimentação, distinguindo-o claramente da electricidade, atribuindo-lhe uma natureza própria e sistematizando um conjunto de propriedades fundamentais: direcção, inclinação, declinação. Por detrás da terminologia mística que usa, está uma concepção geométrica do magnete.

Os sucessores de Gilbert, oriundos de diferentes escolas, renderam tributo à sua obra, que vai ser um ponto de partida para novos empreendimentos científicos no século XVII, refutando, embora, algumas das suas ideias aceitando ou reformulando outras. Vem a propósito referir Kepler, que, retomando a ideia de uma analogia astronómico-magnética a vai, todavia, utilizar de um modo diverso do físico inglês. Kepler conjecturou que a dinâmica do sistema solar era provocada pela acção de gigantescos magnetes existentes no interior do Sol e dos planetas. O Sol teria um movimento de rotação sobre si próprio que iria gerar o movimento dos planetas, sendo responsável pelas suas trajectórias elípticas. Não conseguiu, naturalmente, exprimir formalmente as sua leis em termo dinâmicos. Descartes vai por sua vez negar a existência de qualquer relação entre os movimentos astrais e a força magnética. É o primeiro a desenhar espectros de campos magnéticos e concebe, a partir deles, a existência de tubos de fluxo de acção magnética, que atravessariam o magnete e por onde circularia o ar. O ar parecia, por conseguinte, ser indispensável para a propagação das acções magnéticas. Embora as suas concepções não tenham uma forte base experimental, tem o mérito de criar um ambiente científico-filosófico para o desenvolvimento da ciência do magnetismo, motivando o surgimento de novas teorias e de novas experiências. Por exemplo, a influência do ar na propagação das acções magnéticas é investigada experimentalmente por Boyle, que, tendo colocado uma bússola dentro de uma câmara de vazio e dela aproximado um íman, não notou alteração na atracção ou repulsão sentida pela agulha1. Não tendo o ar qualquer efeito sensível na propagação da acção magnética, Boyle retoma a ideia da troca de eflúvios. O seu contemporâneo Huygens, num livro publicado em 1680, expõe uma teoria sobre a propagação de diferentes acções, baseada na existência de fluidos imponderáveis.

Os Principia de Newton (1687) vêm fornecer um novo quadro conceptual necessário para a constituição do Magnetismo como ciência físico-matemátia. No entanto, foi preciso esperar cerca de um século até que os princípios da física newtoniana se estendessem a este domínio, o que culminou com a lei das acções magnéticas de Coulomb, que repousa numa analogia entre as forças eléctricas e gravitacionais.

O mistério sobre a natureza das forças que actuavam à distância, sem a mediação de um suporte material visível, persistiu, mesmo depois de terem sido estabelecidas as respectivas fórmulas matemáticas. A insatisfação face a este mistério foi sentida pelo próprio Newton e pelos seus contemporâneos e o assunto vai continuar a ser objecto de grande atenção e de intensa polémica. No século XVIII, as diferentes teorias em vários campos da Física continuavam a assentar no pressuposto comum dos fluidos imponderáveis, muito subtis e penetrantes: fluidos gravitacionais, eléctricos, magnéticos, mas também o flogisto, na Química e o calórico, na Termodinâmica.

A consciência da distinção entre fenómenos eléctricos e magnéticos não é, todavia, alheia à suspeita de uma possível inter-relação entre eles. A analogia das expressões matemáticas, observações ocasionais de ocorrência de magnetização de objectos de ferro no decurso de trovoadas e outras conduziam à natural formulação da pergunta: haverá uma relação entre electricidade e magnetismo? Esta pergunta só podia ser respondida com base numa investigação sistemática, que exigia novas experiências e novos meios. Consolidadas as bases da Electrostática e da Magnetostática, inventada a pilha eléctrica por Volta no limiar do século XIX, estavam criadas as condições para a emergência de grandes conceitos unificadores, como os de campo e de energia, e, concomitantemente, para a realização de uma das grandes sínteses da Física: a unificação dos fenómenos eléctricos, magnéticos e luminosos.

No século XVIII, em Portugal, os fenómenos magnéticos despertavam considerável interesse. São disso exemplo as reflexões do notável cientista Teodoro de Almeida nas Cartas Físico-Mathematicas ao seu discípulo Eugénio. No que se refere ao Gabinete de Física o material de magnetismo era abundante, constando de 26 máquinas, das quais restam 13. Talvez seja sintomático da controvérsia sobre as analogias e diferenças entre os diferentes tipos de interacções o facto de, ao longo da sua vida de docente, dalla Bella ter usado critérios diferentes para colocar os aparelhos de magnetismo. Por exemplo, no Index de 1788 o magnetismo é um dos primeiros tópicos, logo depois das propriedades gerais da matéria e da atracção, seguido da gravidade, enquanto a electricidade é o objecto do último capítulo. Na arrumação dos instrumentos nos armários do Gabinete, a atracção e o magnetismo vêm depois da mecânica e antes da hidrostática, enquanto na sua última arrumação, no tomo III do Physices Elementa, o professor patavino mostra uma actualização com as tendências da época, colocando o magnetismo no fim do curso. Como muitos dos seus contemporâneos, dalla Bella procurou, sem sucesso, estabelecer experimentalmente a lei das acções magnéticas.2

Os magníficos exemplares de aparelhos de magnetismo aqui apresentados faziam parte da primitiva colecção do Gabinete de Física pombalino.

1 A questão da influência do ar na propagação de diversas acções continuou, naturalmente, a ser objecto de atenção. Como nota curiosa, refira-se que, no século XVIII, o Abade Nollet concebeu uma experiência com a finalidade de "purgar toda a água do ar nela contido", a fim de verificar se este era indispensável à propagação do som.

2 Sobre este assunto leia-se o artigo de Rómulo de Carvalho, A Física na Reforma Pombalina, incluído no presente catálogo, e a bibliografia aí indicada.


Índice